CONTOS


C A S A  D E  P O R T U G A L (trecho) 

Acabaram de dar a volta de valente. Um giro de reconhecimento, que contorna toda a pista e termina no bar. Útil para quem quer ver e ser visto pelo maior número de pessoas dentro do baile. E era o que eles queriam.

Salão: Casa de Portugal 
Av. Liberdade, 602
Traje: sport chic
Assim dizia o convite e seus sapatos tipo mocassim, da rua Maria Antônia. — Ou ainda não chegaram ou já se enrabicharam e estão dançando lenta. Daqui a pouco eles aparecem — diz o Carlos, enquanto faz graça para duas meninas ao seu lado. Alan também observa e faz tipo, segurando uma cerveja para nova golada. Duas pretinhas charmosas, fingindo ignorá-los, conversam com as amigas acompanhadas. No teto, o pequeno globo multifacetado projeta momentos de sonhos e ilusões.
— Nem acredito que estaria perdendo este baile, dormindo no sofá depois da Sessão de Gala — pensa Carlos, em voz alta, enquanto os casais na pista trocam esperanças e abraços consentidos. Não conseguia entender o porquê de tanta moleza e preguiça para sair. Talvez os filmes da TV, o conforto da casa e uma preocupação com os estudos o fizessem aquietar daquele jeito. Ou uma fase de preguiça mesmo. O fato é que preferia guardar os sábados à noite e mal saía para aniversários, festinhas, quanto mais para bailes na cidade, como os da Chic Show no Palmeiras ou do estilo nostalgia. Sim, um encontro de gerações que gostam de dançar lenta, samba-rock e um This Will Be, da Natalie Cole (...)


AVALIAÇÃO
Sergio Ballouk

Do estacionamento até aqui contei três seguranças. Shopping center me faz baixar a adrenalina. Aqui não há relógios nas paredes. Li em algum lugar que assim a pessoa se perde no tempo, esquece dos problemas e se entrega mansamente aos prazeres do dinheiro. Todo dia de pagamento a população da região deveria vir aqui e trazer o dono das Casas Bahia, o padeiro, o seu Zé da venda, o presidente da Sabesp, Eletropaulo, Telefônica...E juntos esquecerem o tempo e os problemas. O rapaz duzentos e cinqüenta de walk-talk fala qualquer coisa sobre um suspeito... Não pude evitar de ouvir, vício que carrego da antiga profissão. Hoje em dia, boa parte dos meus amigos de infância trabalha no ramo de segurança privada.
Shopping antes do meio dia é tão vazio... Mas não deve ser comigo. Estou cento e cinqüenta, e nem por isso deve ser comigo. Os olhares de mata borrão me acompanham.
Hoje em dia o valor vem antes das pessoas. Se auto avaliam, dão preço às coisas, calculam o salário das pessoas pelo que eles compram, ou dizem o valor à-toa, quando perguntadas, ou somente para se exibirem:
—Aquela jaquetinha paguei trezentos reais, o celular quatrocentos, o sapato noventa e cinco, a camiseta quarenta e três, a calça setenta, viagem mil reais, a rapidinha no hotelzinho com a colega do serviço não tem preço. Mas não, indiferente à propaganda, tudo tem seu preço.
E eu acho graça. De tanto observar as pessoas, me pego também calculando, avaliando tudo em volta.
Até entendo a mensagem na ilusão de ótica petrificada dos manequins das vitrines. Um mundo sem injustiças, sem desigualdades, sem a podridão do dinheiro. Aqui o dinheiro não causa revolta, a revolta ficou lá fora com quem não tem. Aqui se aceita o poder do dinheiro ou é melhor nem vir. Não é o meu caso. Se na minha área tem shopping e posso baixar a adrenalina, por que não? E hoje vai ser bem aqui, nesta loja.
Dizem que encaro a situação com passionalidade, amor, ódio esses sentimentos que atrapalham a razão, nublam os olhos. Talvez eu seja assim mesmo. Pois eu só deveria entrar, procurar o dono da loja, que eu já estou vendo atrás do balcão, perto do caixa, e dar um baita susto nele e nas vendedoras e sair rápido sem remorso, sem culpa. Quando eu puder agir dessa forma, aí sim, serei um profissional, quem sabe os anos me tragam essa experiência. E não ficarei mais encantado como estou agora, frente a vitrine, com as tantas negras reunidas em uma só loja. Quase não consigo deixar de olhar. Uma mais linda do que a outra. Aquela do fundo, mais alta e gordinha, então, veja só! Que boneca! Penso em entrar e me passar um pouco por comprador, quem sabe...
—Olá, boa tarde! O sorriso aramado da moça aloirada seiscentos e oitenta vem me seqüestrar na porta da loja. Sou convidado a falar. Desconverso. Manifesto interesse pelo patrimônio que há na loja.
—Estou só olhando...
—Fique a vontade. Mas... percebi que não desviou o olhar das nossas meninas. Bonitas, não é mesmo? A alta de vermelho, chegou ontem. E aponta para uma semelhante a minha prima Naila.
—Gostou de alguma em especial?
Observo que o dono três mil e quinhentos da loja setenta mil está me avaliando: sapatos, joelhos, cintura, a pasta a tiracolo, subindo, camisa, pronto, chegou no meu rosto. Não me encara, desvia o olhar. No celular, espalhafatoso, diz: —Estou na loja de artesanato. Não demoro a sair.
—Quanto é? Aponto para um casal africano com duas crianças.
—Cento e cinqüenta. Aquela de vestido estampado com jarro na cabeça está em promoção. Só sessenta e cinco.
Loja de artesanato. Bonitinha. Há mais bonecos negros nesta vitrine do que funcionário negro em todo o shopping. Do estacionamento até aqui contei três seguranças, sendo que dois estavam guardando os carros lá fora.
— Ah, tá, obrigado.
Já vi o bastante, e eles demais a minha cara. Da próxima vez, logo alertarão o dono para escapar. Profissional, faço a minha parte e saio.
—Senhor Ademar ?
O homem no caixa contando os cheques se surpreende e responde que sim, ainda sem jeito.
—Ademar Borges Ramos?
—Sim, isso mesmo.
—Eu sou oficial de justiça e vim cumprir este mandado de penhora e avaliação de bens. Pode me acompanhar, por favor.
Pois é. Minha tia dizia que não somos donos nem de nossa imagem no espelho. Ela devia vir aqui pra ver isso. Eu vim baixar a adrenalina.

Publicado nos Cadernos Negros vol.30

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